sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Nicotina, cinzas, fotografias

Aos poucos e a cada suspiro, eu lhe sorvia o hálito de nicotina fresca. Oras, nociva aos meus pulmões vulneráveis. Oras, benevolente aos vícios irregulares do meu corpo. Era um capricho, o que veio para mimar fevereiro, uma entrega com gosto de engano e uma prévia sensação de que tudo pareceria muito distante no dia seguinte. Mesmo assim não havia, naquele instante em que eu lhe tragava o sono, a preocupação ingênua de quem espera, tampouco o medo do inesperado. Havia uma atmosfera sem urgências, sem pressa, sem a ansiedade dos que aguardam (roendo unhas) uma quarta-feira de cinzas e onde eu, insone, simplesmente, velava o sono dela.

A propósito, eu nem lembrava mais: lá fora era carnaval.

Dentro do quarto, cujo cheiro me fazia esquecer que eu evadia do meu próprio universo inquieto, fazia um calor insuportável e eu perdi o compasso da respiração. O quarto dela me dava a sensação de um infinito comportado e cheio de ordens... tão suas. O ambiente dela era ela e me fazia rememorar seu hálito, seu signo, seu nome, seu sexo (nocivo ao meu juízo pouco, benevolente aos meus calafrios de fêmea).

Dentro daquele mundo de efeitos canabinóides, aprendi a ler devagar e com erros de concordância tudo o que os seus olhos me diziam enquanto sua boca me alimentava a tez. Sei que, em algum momento, elevei o pensamento para diante de nós e vi nossos corpos formarem um laço, um hieróglifo indecifrável ou qualquer imagem que, mais tarde, minha lembrança infantil pudesse chamar de bonita ou de poética, assim como o minuto em que nossas mãos a sós travavam diálogo entre elas como a serem velhas conhecidas de estrada.

Ávida de pele, eu me deitava no colchão e já nem sentia arrepios. Já me arrefecia da euforia de um crime malfeito, porém deliciante. A fome jazia sufocada pelo cheiro de mulher e cigarro que se espalhava pelo quarto. Eu via um corpo nu de menina nua dormindo na cama, que horas antes - tão determinado e superior - me levara ao delírio do desconhecido com sua língua a me colher suspiros e gemidos, guiada pelo seu desejo solícito e lancinante. Ela me conduzia a ver o nosso sexo em tudo e tudo era lindo. Ela era sedutora com conhecimento de causa e de efeitos.

Era, então, a descoberta de um pecado conjugal, um affair de carnaval, cujas cinzas encheram o cinzeiro por vezes inumeráveis, sexo após sexo, transbordando até a quarta-feira e, por quantos dias mais... não sei... nem me importa saber. Lá fora ainda era carnaval e quando não fosse mais, das cinzas o tempo cuidaria. Certamente, se misturariam a uma solidão criativa só minha, do mesmo jeito que as cinzas da quarta-feira (de toda a euforia queimada nas avenidas) tingem a solidão dos que voltam para casa exauridos, com os pés cheios de calos e a alegria desbotada.

Entretanto, eu não tenho calos nos pés e a minha alma não deixou de ferver só porque o trânsito do dia seguinte voltou ao normal. Ainda há de ferver leve e gratuita só de apreciar o calor das recordações de dias concedidos pelo acaso, regadas tão deliciosamente pela água da libido feminina. E tais recordações foram tecidas ali, justas e firmes como convém aos que têm a terra como elemento astral...

Antes de raiar o dia, o corpo satisfeito e cansado dela inebriava o meu corpo com a insônia que me fez levantar disposta a chamar de romance os dias quentes do nosso carnaval particular. Dias esses que me pareciam ser rodados em fina película de filme francês com sotaque tupiniquim, numa montagem que ia desde a luz amarela em tom de incêndio do seu abajur, até o vermelho indelicado e decadente do meu esmalte quebrado... até as caras que eu fazia diante de suas represálias de menina séria.

Sentei ali diante de mim, em seu mundo, e revivi o gosto de tudo, já que o fim do carnaval se aproximava. Preparei as melhores imagens e fiz um álbum de fotografias que divulgarão só para mim, quando eu quiser ou precisar, todas as cenas em que eu ‘me fingia tua e te fingia minha’. Ensaiei através delas o sabor das memórias da nossa paixão pagã e clandestina (tão minha que chamo de nossa) e me satisfiz nutrindo a ilusão que me dei de presente do começo ao fim da festa. E chamo assim, de ilusão, só por conta da aparência superlativa do meu desejo em sua força de expressão.

Depois da festa, já não sei o que virá: se virão dias gloriosos ou dias com frustração na saliva. A mim não importa. Sei do que foi delícia até aqui, transponho essa delícia em verbos e neologismos e guardo tudo em uma caixa de segredos. É a parte que me cabe.
- Hora de acordar, baby!
Lá fora já não é mais carnaval... e as suas fantasias, guarde-as para o próximo baile.


17 de fevereiro de 2010.

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